Com o devido respeito pelos seus méritos científicos, a verdade é que o professor Galopim de Carvalho já fez gastar aos contribuintes portugueses um milhão e meio de contos -que foi quanto custou a preservação da sua meia dúzia de pegadas de dinossauro descobertas em Carenque. Estava-se em 1995, últimos meses da governação de Cavaco Silva, e o mesmo Governo que anunciou que ia pedir dinheiro à UNESCO para consertar o telhado dos Jerónimos, à beira de desabar, dispôs-se a gastar um milhão e meio para construir um túnel na CREL de modo a preservar as sagradas pegadas, por cuja defesa militava o professor Galopim, com o apoio da imprensa e dos "agentes culturais" politicamente correctos. O Governo pagou e assim calou os protestos do professor. Durante uns tempos organizaram-se umas excursões de criancinhas das escolas para ver as pegadas dos dinossauros, algumas romarias locais e uns piqueniques domingueiros de "mirones". Mas, como a coisa, uma vez vista, não tinha qualquer espécie de interesse, rapidamente as pegadas voltaram para o esquecimento em que tinham tranquilamente vivido desde a noite dos tempos, até que o professor Galopim fizesse delas motivo de cruzada patriótica e um teste decisivo à "sensibilidade cultural do poder". Consequentemente, seis anos volvidos, o professor passou a achar que, afinal, preservar as pegadas não tinha, por si só, qualquer sentido e grandeza. Veio-lhe então a ideia de fazer um museu à roda do assunto. Mas, como meia dúzia de pegadas de bicho, por mais paleolítico que seja, não chegam para encher um museu, ele propõe-se também acrescentar um poço, umas pedras e um jardim, passando a coisa, em vez de "geomonumento", a chamar-se pomposamente de "Parque Cretácico do Pego Longo". Voluntarioso, como é, o professor não se ficou pela ideia, tratando logo de apresentar à Câmara de Sintra um projecto de arquitectura para o dito museu, aliás, "Parque Cretácico". Esqueceu-se, porém, de alguns pormenores: a coisa estava em zona de protecção do Instituto de Conservação da Natureza, cujo parecer era negativo; violava o Plano Director Municipal de Sintra, devido à sua volumetria, e, finalmente a câmara não tinha os 700.000 contos estimados para levar avante este "Museu da Pegada de Dinossauro". Mas o professor não desistiu: já apresentou novo projecto de arquitectura com menos volumetria, iniciou um "lobbying" junto do Governo e do Presidente da República para obter o financiamento necessário e já voltou para os jornais, dizendo que se o Governo não pagar o seu "Parque Cretácico", será responsável pela degradação do "monumento". Se bem se recordam, processo exactamente idêntico sucedeu em Foz Côa, mas aí com um detalhe constrangedor: é que a maior sumidade mundial na matéria, chamado para datar as paleolíticas gravuras descobertas nas paredes do vale, as datou... entre 300 e 30 anos - o que teve como efeito imediato que a dita sumidade passasse a ser classificado como incompetente e ché-ché, até por alguns daqueles que tinham requerido o seu testemunho. Assentou-se, pois, em que as gravuras eram paleolíticas e não sabiam nadar, pelo que havia que escolher entre um acto de defesa da cultura e a construção de uma barragem que, dizia-se, iria servir, sobretudo, para regularizar o caudal do Douro (faz-vos soar alguma campainha?). Houve ainda uma elucidativa querela "científica" pela paternidade da descoberta e, principalmente, pelo aproveitamento futuro das suas benesses. Veio então o Governo socialista, que resolveu estrear-se com um acto grandiosos de defesa do património cultural do país. Portugal, juraram-nos, passou a ser visto desde então como um exemplo na preservação de valores culturais. É certo que por todo o país desaparecem os tesouros de arte sacra guardados nas igrejas, quando não as próprias igrejas, algumas românicas, que caem aos bocados e são vendidas pedra a pedra para os antiquários espanhóis que as vêm cá buscar. É certo que, em todo o país, não existe um museu de pintura nem um museu de história dignos desse nome. É certo que, por todo o país, o instituto que tem a seu cargo a defesa do património edificado - o Ippar - se dedica a restaurar castelos medievais com betão armado e a dar o seu consentimento a verdadeiras malfeitorias urbanísticas que lhe são apresentadas para deferimento. É certo que, no que respeita à preservação quer do património edificado, quer do património natural, a única coisa que nos distingue dos taliban é que nós não usamos TNT para nos desfazermos do que temos - usamos armas mais inteligentes, tais como o "deixa cair" e o "deferimento tácito". Mas, caramba, as pegadas dos dinossauros e os rabiscos, ditos paleolíticos, de Foz Côa, isso defendemos como se fossem as pratas da família! E foi assim que a barragem perdeu para as gravuras e que agora se projecta uma barragem de substituição no Paiva, o mais despoluído dos rios portugueses, e onde a sua construção será devastadora para o ecossistema envolvente. Passados seis anos e instalada em Foz Côa a Direcção-Geral do Paleolítico Superior, com o seu inevitável quadro de funcionários e respectivas mordomias, seria interessante saber que trabalho efectivo ou que estudo aturado é que eles lá fazem e que não poderia ser feito se se tivesse fotografado, filmado, reproduzido em moldes ou documentado por qualquer outra forma as gravuras, para serem estudadas num gabinete de uma universidade. E seria interessante saber-se agora quantos visitantes - fora os compulsivos, como as criancinhas das escolas - visitam as gravuras anualmente, quantas são visitáveis, quantos dos milhares de turistas que anunciavam já se deslocaram lá, quantos são os também previstos académicos do mundo inteiro que lá passam temporadas de embevecido estudo e as suas conclusões, enfim, em que se traduz no concreto o progresso, o trabalho e a rentabilidade acrescida para a terra e a região. Desculpem se volto a um tema que se me torna recorrente. Mas, desde as pegadas de dinossauro às obras-primas filmadas a negro, do Jardim Zoológico, sociedade anónima e privada, ao rancho folclórico de Algodres Velho, não há manifestação reclamadamente cultural que não exija do Estado o reconhecimento da sua desinteressada actividade cultural e, simultaneamente, o seu financiamento. Mas, algures, terá fatalmente de existir um critério, e esse não pode ser nem o da força dos "lobbies" instalados nem o terror do velho argumento que se traduz na parábola do rei que vai nu. É preciso que o comum das pessoas entenda por que é que não há dinheiro para restaurar o Palácio da Ajuda mas há dinheiro para preservar umas quantas pegadas de dinossauro. Por que é que não há vontade para defender a Ria Formosa ou a Ria de Alvor, mas há vontade e oportunidade política para defender as paredes, aliás interditas ao público, do Vale do Côa. Com todo o respeito pela cruzada, em tudo legítima, do professor Galopim de Carvalho, declaro, enquanto contribuinte, que já dei para o peditório do dinossauro que passou por Carenque há não sei quantos milhares de anos. E a única coisa que desejo é que ele não continue a passar por lá todos os anos, porque se um Estado que tem de começar a cortar urgentemente as suas despesas não produtivas, sob pena de estrangular o país e os seus cidadãos, não começa por poupar no "Museu das Pegadas", vai poupar aonde? Miguel Sousa Tavares Caros colegas, Paulo Legoinha - Univ. Nova de Lisboa (Abril/2001) O artigo merece reflexão? CARTA ABERTA A MIGUEL SOUSA TAVARES Dissecando o caso. Para o político, começa por se colocar a opção estratégica do investimento em preservação de Heranças e Memórias. Definida esta, creio que existe, para todos os que têm como missão preservá-las, uma questão geral e de fundo: como gerir os parcos recursos quando há tanto de interessante. E este dilema (ou multilema) é acutilante para a vivência profissional e a sensibilidade pessoal de geólogos, arqueólogos, biólogos, historiadores, conservadores, coleccionadores, etc. etc. Se assim é, gerir o bolo implica reconhecer, à partida, a importância, não sobreponível, dos diferentes aspectos das memórias. E, com fundamentação, dividi-lo. O problema consiste na largura das fatias. Estou de acordo: estas são discutíveis, mas não tenho dúvidas de que um sistema de divisão que possa ter algum equilíbrio passa por entidades que possam levar aos decisores políticos a noção, ou consciência mesmo, da importância do objecto de memória a preservar. Ou melhor, da importância da preservação do objecto de memória. Claro que esta sensibilização só pode ser efectuada por aqueles que conhecem o fenómeno, e claro que ninguém coloca em causa a legitimidade desta posição. Nova questão: como encontrar o valor relativo das áreas? Até se admite a posição política eles depois que se entendam, eles historiadores da arte, eles biólogos, eles geólogos, eles conservadores, etc.. Começa aqui, creio, um das questões que, fazem sentido ser abordadas num artigo como o do Miguel: a distribuição do bolo pode ser casuística, ao sabor de opiniões públicas volúveis qual piuma al vento, desconhecedoras das tais essências, ou, pelo contrário, fundamentadas em pareceres especializados? Suspeito que, postas as coisas assim, é mais ou menos concensual, até para o Miguel, que o processo de apoio técnico à decisão é preferível. Sem sofisma, estou em crer que em qualquer colecção de sábios de várias especialidades estará cada um puxando a brasa à sua sardinha, mas ao menos discute-se com bases tão sérias quanto possível. E no fim, quem de direito decide, e assume politicamente e em consciência (admitimos). Só que o tipo de intervenções de opinion makers do género do artigo em apreço, é um caso típico daquelas que contribuem para que o país seja demasiadas vezes, ao menos aparentemente, governado em função de um enorme cata-vento da opinião pública, cuja representatividade é, obviamente, muito discutível. Saiba que, apesar de leitor do jornal onde aparece, dei com ele porque está em discussão num forum de debate sobre matérias geológicas onde participa o pessoal que cultiva (sim, porque também é cultura) esta área do saber (ou do que se vai sabendo ). Quem estuda a natureza, incluindo, bem entendido, a espécie humana, não gosta de ver deixar cair e de atentados por deferimento tácito, mas creio que quem ler o seu artigo vai ficar mais disponível para aceitar ou mesmo apoiar esse tipo de atitudes para o património natural, em particular geológico. Tais circunstâncias têm paralelismo com as que permitiram o aparecimento de alguns Mata-Frades da nossa História, que em nome do progresso material deram machadas irreversíveis na nossas raízes colectivas (estou-lhe a escrever da alta coimbrã ). Estou plenamente convencido de que não será esta a sua vontade, mas, sem se dar conta, está a sugerir que se deixem cair telhados de Jerónimos. Talvez aqui a culpa seja também da comunidade científica geológica, por não ter ainda conseguido criar uma sensibilização da opinião pública semelhante à que os Jerónimos, muito legitimamente, possuem. Para finalizar, dois comentários laterais. O custo real do túnel é muito inferior ao que referiu, pois a esse têm que ser deduzidas as poupanças em passagens superiores na região (urbana) e das expropriações dos terrenos, bem como o preço da obra na versão à superfície. E já que trouxe à baila a queda da ponte de Entre-os-Rios, cuja ética (falta ) da ventania mediática e o seu impacte no estado de espírito dos portugueses tão bem criticou, devo dizer-lhe que o desabar do pilar resultou, mais do que das correntes anormalmente elevadas, da enorme falta de areia no Douro, consequência directa da construção de barragens: com elas a ponte caiu, sem elas não cairia por aqueles motivos. Como sei que não necessita dos meus conselho, vai sob a forma de sugestão: para poder formar a opinião pública, informe-se! Enquanto Homo sapiens, espécie que cometeu o pecado original de desrespeitar o sistema natural que integra, declaro que já dei para aceitar passivamente o delapidar das heranças onde poderemos aprender a remissão, se é que ainda é possível. Termino com a esperança de que futuramente, após diálogo, possamos estar no mesmo lado da barricada em defesa dos patrimónios reconhecidamente importantes. Jorge M. L. Dinis Caros Geoporianos, Carlos Marques da Silva - Univ. de Lisboa (Abril/2001)
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